Milagres do Povo

Delegação cultural brasileira, prova grande semelhança entre os povos de Cuba e o Brasil
Por: Antón Vélez Bichkov 

(Dos meus arquivos... maio/08)

Se acreditamos em Caetano Veloso, se pode ser ateu e ao mesmo tempo ver milagres. Os milagres dos deuses e os milagres do povo. Dos primeiros já não ouvimos falar muito. Ficaram nos tempos dos mitos. Dos últimos, porém, a prova mais recente foi a visita da delegação brasileira à Feira Internacional Cubadisco-2008 – nesta ocasião dedicada à África e sua Diáspora.

Apesar do eterno dilema econômico-financeiro, que nem sempre acompanha favoravelmente àquilo que tenha um mínimo sabor de arte, os membros do Grupo Folclórico Omô Arô, do Rio de Janeiro e os também cariocas Luis Carlos da Vila, Moacyr Luz e Amorim, puderam chegar para apresentar seus talentos, perante um receptivo público cubano, que também pôde entrar em contato com os saberes e ofícios do ator Haroldo Costa, do Mestre de Capoeira, Manoel e a convidada especial Helena Theodoro, primeira doutora negra na história do Brasil.

Talvez seja redundante, mais é preciso falar... Cuba e o Brasil vibram praticamente com uma só emoção e esta, deve muito a um terceiro lugar, que na verdade não é mais do que o pedacinho original, da nossa Grande Pátria, espalhada por três terras. Estamos falando da África, otimamente representada na ocasião por grande número de delegações do continente negro.

Entre eles, destaque especial para os percussionistas do mítico estado de Oió, na Nigéria, que com seus instrumentos típicos, trouxeram um pouco da história e o espírito, dessa nação, que tanta influência teve na formação da cultura do Novo Mundo.

Dizem que para os ioruba cultura e espírito são coisas muito conexas e difíceis de desvendar. Não se sabe ao certo quando termina uma e começa a outra, pois tudo faz parte de sua vida cotidiana. 


Aqui nas América, nós que somos seus herdeiros, diretos ou indiretos, vivemos algo semelhante, pois a fronteira entre as expressões folclóricas e o universo do pensamento e a fé também é tênue, mas sempre presente, como se alguém não quisesse sua desaparição, assustados, por uma suposta e nociva conseqüência.

Seria reconhecer – sobretudo naqueles países que ainda não resolveram bem a questão racial – que a África não é apenas uma estatística em algum arquivo histórico de forçados imigrantes ou essa palavra de seis letras que habita, além dos manuais de fatos passados, nas manchetes de penúrias e desgraças humanas de jornais e revistas.

Seria reconhecer que a África ainda está viva, não só nos seus filhos biológicos, mas também nos adotivos, por cujas veias, talvez não corra um sangue geneticamente negro – ou talvez sim, a ciência atual desmente qualquer ‘pureza racial’ – mas cujo coração bate graças à força de sua cosmovisão e seus deuses, hoje mais presentes do que nunca.

Assim unidos pelo sangue e o espírito, cubanos e brasileiros, tiveram a chance de vivenciar uma experiência única na noite da quarta-feira passada (21/05), apesar de certos percalços, que é melhor esquecer... A poesia do “branco mais negro do Brasil, filho legítimo de Xangô” (Vinícius de Moraes), declamada por Haroldo Costa, abriu a Noite Brasileira do Cubadisco-2008.

Prelúdio melhor não havia para o que veio depois. O mestre Manoel, acompanhado dos ritmistas do Omô Arô e vários jovens cubanos, mostrou alguns dos passos básicos da capoeira de Angola. Pouco depois, num ritual imprescindível, foi saudado Exu, para abrir os caminhos da arte.

A Mãe Beata de Iemanjá do Ilê Omi Oju Arô, localizado no Rio, secundada pelo percussionista Aderbal Moreira – coordenador-geral da delegação – Adaílton Moreira nos vocais e a Sônia Moreira na dança, mostraram que mesmo que os orixás nem sempre soem igual em lukumi e nagô (as duas variantes idiomáticas desenvolvidas em Cuba e o Brasil a partir de distintos dialetos ioruba), a identidade é inevitável.

Em idêntica seqüência à conhecida em Cuba – que na África encontra variações – entraram Exu, Ogum e Oxóssi. A cadência do ritmo ijexá, mostrou as belezas da Vênus ioruba: Oxum, para depois dar passo ao intenso alujá de Xangô, demonstrando mais uma vez o que sua dança é capaz de fazer. Popularíssimo em Cuba, o deus do trovão e o fogo, fez a platéia acompanhar com intensas palmas a performance de Adaílton Moreira, na sua pele.

E como era difícil vir a Cuba e não cantar para Iemanjá – como confessaram os membros do talentoso conjunto artístico, que veio em versão reduzida, pois originalmente são quase 60 membros – logo em seguida se espalhou pelo ar o som da deusa do rio Oogun, que nas Américas, ganhou também o domínio dos mares.

Não se pode conceber uma noite brasileira sem samba e aí estavam Luis Carlos da Vila (k'ibae!), Moacyr Luz e Pedro Amorim, para dar ritmo à noite. Depois de alguns minutos de dificuldades técnicas, entrou “Eu sou o samba”, clássico dos Demônios da Garoa, seguido de “Iemanjá, Rainha do Mar”, popularizada na voz de Maria Bethânia, que a gravou em seu disco “Mar de Sofia” (Biscoito Fino, 2006). 


Curioso é, que esta peça, originalmente não tinha nome definido, como nos relatou seu autor, o compositor Amorim. Inclusive, a idéia era chamá-la de “Princesa de Aioká”, porém, por um desses acasos do destino, quando a canção foi apresentada à Bethânia, ela a pegou e sem pensar duas vezes a batizou como atualmente.

O público, não pôde resistir ao ritmo e seguindo o exemplo dos muitos brasileiros que estavam na platéia, começou a sambar ou ao menos intentá-lo. A noite terminou em grande estilo, com outro clássico do universo sambista: “O show deve continuar”.

Já na manhã da seguinte, os integrantes do Omô Arô, participaram de uma oficina do Instituto Superior de Arte (ISA), em que mostraram os principais ritmos de seu repertório, que inclui além das tradicionais cantigas aos orixás, outras expressões da cultura popular brasileira, que encontram abrigo no Instituto de Desenvolvimento Cultural (INDEC).

O INDEC trabalha diretamente com a comunidade no município de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense (popular entre nós por ser locação da mítica Vila São Miguel, da novela “Senhora do Destino”) e tem por objetivo a valorização, por meio das religiões afro-brasileiras, da consciência negra no Brasil. 


Estas expressões de espiritualidade hoje, além de seu clássico papel de reconexão do homem com o divino, são também núcleo de resistência para os afro-descendentes, cuja posição na sociedade, apesar dos discretos avanços, propiciados por instrumentos jurídicos como a Lei 10639, que obriga ao ensino da História e Cultura Afro-brasileira nos currículos escolares, ainda fica a dever...

Na manhã da sexta-feira, a Dra. Theodoro, ministrou uma palestra sobre a riquíssima obra do sambista Martinho da Vila, que com sua singular voz rouca, mas cheia de matizes, consegue consenso entre leigos e especialistas: é um dos nomes fundamentais da atual MPB.

Sua extensa produção artística, recolhida em mais de 40 discos e um sem-número de participações especiais, inclusive em álbuns-homenagens, como o “Café com Leite”, que com suma reverência lhe dedicou outra grande da música brasileira, a cantora Simone, não é conhecida na ilha, pelo que a apresentação da Dra. Theodoro, despertou grande interesse entre os musicólogos presentes, público-alvo do colóquio teórico do Cubadisco-2008.

Mesmo que discretamente representado, o Brasil, também fez parte do Carnaval da sexta-feira, que organizado pelo Comitê gestor do Cubadisco-2008, invadiu a principal rua de Havana, a Calle 23, com bom número dos convidados ao evento cultural. Na noite da quarta, o Júri fez entrega oficial do Prêmio Internacional ao CD “Carioca” de Chico Buarque, recebido pela Conselheira da Embaixada do Brasil em Cuba, Sra. Silvana Dunley.

Já a tarde do sábado foi momento propício para unir as duas tradições, no espaço da Associação Cultural Ioruba de Cuba, onde junto com as meninas de Obini Batá (os tambores batá tocado por mulheres), os membros do Omô Arô apresentaram um programa mais puro, das tradições musicais do Candomblé.

Segundo declarações do coordenador Aderbal Moreira, o conjunto, já estabeleceu convênios com várias das mais importantes instituições culturais do país, dentre eles o Ministério da Cultura de Cuba, o Conjunto Folclórico Nacional, o Instituto Superior de Arte, etc.

Para Moreira, que já esteve em Cuba no Congresso de Cultura e Desenvolvimento, celebrado em 2007, em Havana, a cooperação com a ilha é um dos alvos principais de seu grupo. Moreira vê grande perspectiva, sobretudo no intercâmbio de experiências relacionadas com a defesa da cultura de origem africana, que de acordo com ele, é fortemente vivenciada pelos cubanos, já sejam negros ou brancos, sem as absurdas barreiras da cor ou nível social. Portanto, o regresso está garantido e Cuba lhe dirá em perfeita língua nagô: Oo kú àbò! (Bem-vindo!)

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